quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

AUGUSTO SIMÕES SOBRE ORISVALDO INÁCIO : “TUA FAMÍLIA E TEU POVO TE AMAVAM”

Augusto Simões (esq) : Homenagem ao "tio Orisvaldo"


Na noite do sábado, de todas as palavras que me tomaram a memória de assalto, as que mais me tingiram a dor foram as do poeta, que disse certa feita que a morte lhe chegara pelo interurbano em longas espirais metálicas. Não era morte de meu pai, mas experimentei o sentimento de desterro, de distância, o asilo de não poder enxugar as faces amadas, de não soluçar ao ritmo do peito alheio confrangido pela dor comum. Na noite de sábado, de todas as lembranças que me tomaram, nenhuma como aquela. Nem as vitórias, pesares, celebrações, despedidas, nada como aquela, a mais bela das lembranças.

Éramos crianças e te escalávamos. No alto da tua cabeça a euforia nos fazia alvoroçar um emaranhado de cabelos assanhados. Morríamos de rir contigo, quando sacavas um pequeno pente negro, voltavas a pentear a fronte e novamente nos oferecias solícito o prazer de desgrenhar. “Aquieta estes meninos, Orisvaldo!”, ralhava tia Giza. Ficávamos em suspenso, no aguardo de tua reação. E quando sorrias, quando sorrias aquele teu sorriso cândido e sereno, sempre presente, por mais difícil que fosse sorrir, ali, titio, estava a salvaguarda de nossa diversão infantil. Podíamos continuar te assanhando. No entanto, havia algo naquela brincadeira que ainda não compreendíamos. Muito mais tarde, conhecendo tua história, eu entenderia. Fostes um anjo de branco cruzando a vermelha poeira do sertão, trazendo vida, tão precioso bem, tão mais raro por onde andavas.

Quantos choros de criança por tuas mãos não romperam a escuridão da seca como uma chuva de bênçãos, cobrindo o pajeú. Fostes um líder desarmado, distante do apego ao mando, num mundo tão marcado pelo autoritarismo, tua autoridade serena revestia-se, humilde, do manto do aconselhamento. Fostes um marido leal e fiel ao teu sacerdócio matrimonial, solidário até o fim à missão conjugal que foi confiada um dia no altar: amai-vos em todas as horas e aos teus semelhantes como eu vos amei. Fostes um pai modelar. Tua esposa, tua mesa, tua casa, foram videiras fecundas, que te deram os mais doces frutos. Sem alarde nem vaidade, forjastes uma família que só adornou de belezas teu nome neste mundo: tia Giza, Eugênia, Danilo. E se somaram Roberto e Sandra. E vieram teus netos: Sofia, Tiago, Gabriel, Letícia e agora, Felipe.

Quando esperava a chegada de teu féretro abraçado a Angélica, bem em frente a tua casa, morada de tantas lembranças, já esperava que a multidão te acompanhasse no desejo de amparar a dor de tia Giza. Assustei-me, no entanto, com o volume e a intensidade da comoção do povo de Afogados da Ingazeira. A profusão de motos, o cortejo dos carros, as calçadas apinhadas e, sobretudo, as mãos calejadas dos sertanejos enxugando as lágrimas e estendendo-se aos céus em sinal de fé. Eras na despedida o que fostes em vida, amado ao extremo.

Nas missas em Afogados e Alagoinha, padre Adilson Simões foi mais uma vez inspirado pelo Espírito Santo: “Não morre quem crê em Deus e faz da vida serviço ao próximo. Estaremos todos juntos na ressurreição do Senhor e participaremos de sua glória num corpo luminoso e incorruptível, pois Cristo venceu a morte.” Palavras de vida, palavras de consolação.

No derradeiro adeus, surgiu, por graça de Deus e em meio a um poço de imensa dor, a força de tia Giza: “Seja recebido no céu, Orisvaldo, com todo amor que foste recebido pelos homens e mulheres do mundo, fica com Deus, até que nos encontremos na eternidade”, disse ela entre os soluços. Tua família e teu povo te amavam por tudo o quanto te doaste. E foi por isso, tio Orisvaldo, que descobri, anos mais tarde, a grande lição da brincadeira infantil de te assanhar. A ti nada importava, tua alegria era a felicidade alheia, mas por mais que tentemos, titio, és muito grande, jamais poderemos te escalar.

Augusto Simões Maia

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