por Pablo Holmes*
para o Acerto de Contas
para o Acerto de Contas
Mais uma vez juízes federais ameaçam a sociedade para reivindicar salários ainda mais altos do que aqueles que recebem hoje, a contrapelo da sensibilidade e da justiça social. A essa altura, seria certamente debalde discorrer, mais uma vez, sobre o quanto são altos os salários de juízes brasileiros, sobretudo os da justiça federal.
Não se trata aqui de lembrar que juízes federais brasileiros ganham, na média, em um país cuja renda per capita mensal não passa dos 1.400 reais, mais de 20 mil reais mensais, se somarmos todos os benefícios anuais.
Aliás não se trata de lembrar, uma vez mais, o completo absurdo dessa proporção, se a comparamos com outros países do mundo. Certa vez comparei os salários de juízes da Alemanha, país cuja renda per capita mensal alcança os 8.000 reais, e me surpreendi com o fato de um juiz federal alemão ganhar um pouco mais da metade do que ganha seu colega-equivalente brasileiro.
Certamente poderíamos retomar argumentos sociológicos, para tentar explicar as causas desses absurdos, que remontam à histórica apropriação do Estado por parte de nosso andar de cima, o que não se modificou muito, mesmo depois do processo de urbanização e industrialização. Mas tampouco se trata disso.
Já não fosse o absurdo da idéia de uma greve de juízes, com a qual fomos ameaçados meses atrás, alguns juízes federais agora parecem ter encontrado, a seus olhos, uma outra solução política para sua reivindicação.
Para a surpresa da lógica, desafiando o senso mais básico de republicanismo, contrariando a ordem jurídica e agindo de modo inconseqüente contra a democracia, alguns de nossos juízes federais romperam o limite do absurdo. Do papel de potenciais “trabalhadores explorados“, que ameaçam fazer greve contra os patrões, passaram a um papel que deveria assustar toda a sociedade civil brasileira.
Eles anunciaram que estão dispostos a realizar uma “operação padrão”, deixando de julgar causas de interesse da união, enquanto o executivo não se empenhe para aprovar no congresso peça orçamentária que aumente substancialmente seus ganhos. Parecem acreditar que, prejudicando a união, forçarão o executivo a atendê-los.
O cidadão comum deveria porém se colocar algumas perguntas simplórias: É à União que esses juízes prejudicam? Sua chantagem se dirige ao executivo apenas, ou melhor ainda, ao governo que, eleito em eleições gerais no ano passado, formula a peça orçamentária para aprovação parlamentar?
Ora, mas de onde vem os recursos do orçamento da União? Não seria dos impostos pagos pelo conjunto da sociedade? Com a sua chantagem, esses juízes pensam em forçar o governo à medida que prejudicam a todos nós? Eles então acham que, em sua posição, têm a prerrogativa de, em nome de seus interesses e utilizando do seu poder, prejudicar todos aqueles que pagam impostos?
A verdade é que esses juízes, ao fazer tal ameaça, abandonam os limites políticos do imponderável. Agem como sequestradores da ordem jurídica, da qual são os guardiões.
Sua conduta constitui, aliás, uma afronta direta ao código penal. Mais claro o art. 319 do Código Penal não poderia ser ao definir o crime de prevaricação como “retardar ou deixar de praticar, indevidamente, ato de ofício, ou praticá-lo contra disposição expressa de lei, para satisfazer interesse ou sentimento pessoal”, cominando-o uma pena de detenção 3 meses a 1 ano e multa.
Se professores, carteiros e outras categorias fazem greve e, prejudicando toda a sociedade, reivindicam melhorias em seus salários de fome, eles podem sempre ser controlados pelo judiciário: a instância republicana e social encarregada do funcionamento da ordem jurídica.
Mas quem poderia impor a lei a esses juízes? Estariam eles, então, acima da lei?
Nesse ponto, é importante lembrar que em toda ordem constitucional democrática o fundamento da legalidade é a soberania popular.
Para nossa constituição, “Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição” (CF art. 1, parágrafo único).
Longe de ser uma mera cláusula sem sentido e utópica, essa é a base da própria ordem jurídica, fundando a legitimidade da própria constituição, que se assenta na defesa da soberania popular por meio da obediência ao direito. O direito é a única expressão da soberania do povo, mas apenas sua expressão.
Poderiam os juízes romper com a ordem jurídica?
É claro que não. Normas jurídicas continuam a valer, mesmo quando não são aplicadas. Cometendo ilegalidades, juízes não revogam a ordem jurídica, apenas a descumprem.
Aliás, a soberania popular do direito encontra seus reflexos últimos também na esfera penal. Como sua conseqüência direta, nosso código de processo penal deixa claro que “qualquer do povo poderá e as autoridades policiais e seus agentes deverão prender quem quer que seja encontrado em flagrante delito” (CPP, Art. 301).
Ora, em defesa da democracia, em defesa da ordem jurídica, cabe a nós, cidadãos comuns, no caso daqueles juízes que realmente levarem a cabo sua ameaça ilegal, lembrá-los de que não estão acima da lei. Numa democracia, “qualquer do povo” está juridicamente habilitado a coibir o descumprimento do direito, que é expressão da soberania popular. Cabe a nós, cidadãos, dizer aos juízes que prevaricarem: “Senhor Juiz, o Senhor está preso!”
_____________________
* Pablo Holmes vive em Berlin, é bacharel e mestre em direito pela UFPE e doutorando em sociologia pela Universidade de Flensburg, Alemanha
Nenhum comentário:
Postar um comentário